O ringue diplomático na disputa por cadeira na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Briga ganha contornos políticos e põe em lados opostos o governo Trump e o Palácio do Planalto

O advogado colombiano Pedro Vaca Villarreal, relator especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), desembarcou no Brasil, em 9 de fevereiro, para uma missão de cinco dias. Reuniu-se com integrantes do governo Lula, ministros do STF e figurões do Legislativo (com direito a uma reunião com aliados de Jair Bolsonaro, ocasião que contou com a presença do próprio ex-presidente). Villarreal causou zum-zum-zum por onde passou pela espinhosa tarefa da qual foi encarregado: avaliar se a liberdade de expressão no país estaria sob ameaça. Na pauta da visita constava uma apuração sobre as prisões decorrentes do 8 de Janeiro e o bloqueio de perfis com discurso antidemocrático nas redes. Ele deveria colher evidências para esclarecer se ambas as decisões obedecem aos preceitos da Organização dos Estados Americanos (OEA), à qual a comissão é vinculada.
O observador independente, como se apresenta, recolheu documentos e depoimentos agora em análise no colegiado da CIDH — órgão que se debruça sobre denúncias de violações de direitos individuais, emite medidas cautelares e, quando necessário, recorre à Corte. Não há ali punições concretas, é verdade, mas nos círculos da diplomacia todo mundo sabe: um parecer contrário vindo da comissão baseada em Washington pode trazer dor de cabeça a quem está na mira, por seu potencial de reverberar nas várias esferas do poder pelo continente americano. Entre 25 e 27 de junho, três das sete cadeiras da CIDH serão substituídas, processo que se desenrolará sob a bela e pacífica moldura do Caribe. O que não vem se dando em águas nada tranquilas é a disputa pelos assentos, normalmente fruto de consensos costurados por toda a América.

Desta vez, um embate de colorido ideológico tomou a cena, pondo de um lado do ringue uma candidata conservadora defendida pelo secretário de Estado americano, Marco Rubio, e do outro um brasileiro apoiado por altos quadros do Planalto, entre os quais o chanceler Mauro Vieira e o advogado-geral da União, Jorge Messias. Em tese, os dois nomes poderiam emplacar na CIDH — mas nos bastidores todo mundo sabe ser páreo apertado, daí o duelo direto entre os dois postulantes. Ao lançar o nome de Fábio Sá e Silva, acadêmico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e professor na Universidade de Oklahoma, o objetivo do governo brasileiro é frear ventos mais à direita que podem imprimir uma nova face à CIDH. Como a comissão elege os assuntos que põe em pauta, funcionando como um filtro no debate que ecoa pela América afora, a preocupação é que os holofotes se voltem para tópicos de interesse dos mais radicais conservadores, como o próprio Donald Trump. “A briga é uma novidade que reflete a mudança dos tempos. Há uma mexida na ordem internacional, e os países querem fazer valer sua visão sobre os direitos humanos”, diz Fábio Sá, o candidato brasileiro.
As fichas de Washington estão todas depositadas em Rosa María Payá Acevedo, 36 anos, cubana radicada na Flórida que é vista hoje como expoente da oposição anticastrista — seu pai, segundo a própria CIDH, teria sido eliminado, em 2012, pelo regime comunista que vigora na ilha. A candidatura ganhou tração em abril, quando ela começou a rodar países diversos pregando a cartilha trumpista que Rubio, seu padrinho na disputa, muito aplaude. “Rosa promove liberdades fundamentais”, defendeu recentemente o secretário de Estado, que tem seus próprios interesses, sobretudo na América Latina. “No atual tabuleiro geopolítico, a região vem crescendo em importância e, além disso, Rubio, um possível presidenciável, olha para o eleitorado latino em seu país”, observa Pedro Brites, especialista em relações internacionais da Fundação Getulio Vargas.

Entidades de direitos humanos já pressionavam o Brasil havia tempo para brigar por uma cadeira na comissão, mas o impulso para entrar no páreo veio mesmo com a candidatura americana, que parecia improvável neste momento em que os Estados Unidos se afastam de órgãos multilaterais. Um fator que teria contribuído para a iniciativa é a presença de Eduardo Bolsonaro em solo americano — na condição de deputado licenciado, ele tenta se enfronhar no séquito trumpista e dar voz ao bolsonarismo, justamente o que o governo Lula procura neutralizar. Também há discussões espinhosas que o Itamaraty não gostaria de ver dominadas pela extrema direita, sobretudo as que envolvem Cuba, Venezuela e Nicarágua, regimes autoritários de esquerda que frequentemente põem a diplomacia nacional em situação desconfortável.
Os trumpistas costumam tecer críticas pesadas contra a comissão — em 2024, quatro congressistas republicanos ameaçaram rever medida que estabelecia repasses financeiros à CIDH caso não se posicionasse sobre a atuação do ministro Alexandre de Moraes no bloqueio da rede X no Brasil. Em março deste ano, a mesma comissão emitiu um comunicado, o segundo em menos de dois meses, expressando preocupação com iniciativas do governo Trump, tais como deportar estudantes e soltar declarações que colidem com o Judiciário. É neste caldo de elevada polarização que, nas últimas semanas, o Itamaraty intensificou as articulações em Washington, onde estão concentrados os embaixadores com poder de voto na CIDH. O próprio postulante ao cargo viajou para ventilar suas ideias e selar alianças. Como se vê, o plácido mar do Caribe deve ver a maré subir daqui a uns dias.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949